quinta-feira, 5 de abril de 2012

Trabalhar com o que se tem em mãos (1)


     Semestre passado, depois de julho, na verdade, eu tinha um problema em mente; como testar algumas de minhas hipóteses pedagógicas sobre desenvolvimento de consciência rítmica por meio de padrões matemáticos com crianças em idade escolar? Em 2 semestres de testes com alunos do ensino médio e do ensino superior – gente dos 14 anos em diante – eu já tinha feito testes e o resultado foi o mais promissor possível, mas segundo a hipótese que eu havia formulado, era preciso que as ferramentas de ensino que desenvolvi funcionassem também com crianças menores de 12 anos. Para ser mais exato, dentro do que uma hipótese pode pretender em exatidão, os protocolos de ensino que desenvolvi tinham que funcionar, no mínimo, com qualquer criança alfabetizada e que não fosse muda. Como porém quanto mais longe dos centros de pesquisa mais importante é o título e menos o conteúdo, e não  tendo eu título algum fora o de eleitor, entrar na secretaria de um colégio qualquer e explicar o que pretendia não seria um opção válida, pensei eu, periga eu sair preso por exercício ilegal de alguma coisa já cartelizada, vá saber... Mas daí descobri um projeto do governo Federal chamado Mais Educação, onde as crianças vão em turno inverso para a escola e a cada dia da semana têm uma aula especializada. 2 matérias, Letramento e Matemática, são compulsórias mas nos outros 3 dias elas têm atividades como dança, horta e música. Bingo! Procurei então uma escola - na verdade fui chamado, mas isso é assunto para outro texto -  e o público alvo era exatamente o que eu queria e precisava; na década passada, a prefeitura pegou um pessoal que morava num lugar chamado Vila Tripa e os re-alocou numa área ao lado do bairro Ruben Berta e, creio eu, por causa disso instalou uma escola de ensino fundamental e médio neste novo bairro para que a criançada pudesse estudar e ser melhor incluída no mundo. Como moro em Cachoeirinha, uma cidade que fica grudada na Zona Norte de Poa, a distância em quilômetros não é muito grande e num mundo ideal onde não haja engarrafamento, levo uns 40 minutos entre minha casa e a escola. O trabalho é oficialmente voluntário mas o governo dá uma ajuda de custo de 300 pila para cobrir gastos com passagem e alimentação. Na verdade é um sub emprego no bom sentido da palavra, e como explicarei mais adiante, o pessoal que administra o país pra gente está marcando toca no modo de divulgar a atrair voluntários; o que estou fazendo é mais inteligente e mais simples.
     As crianças são o que tem de melhor; e quanto mais carentes, mais fácil de trabalhar com elas. Certo, sei que todo mundo pensa exatamente o oposto, e vejo muita gente falando e descrevendo o trabalho com o pessoal carente de renda como um grande ato social, como um um aprendizado de vida, mas na boa, o que estas crianças têm de mais incrível não é a capacidade de aprender, que é basicamente a mesma que encontrei lecionando numa das escolas mais caras de Poa no ano passado. Enquanto esponjinha para aprender criança é tudo igual em tudo quanto é lugar. O que estas crianças carentes têm de mais impressionante, ao menos para um professor como eu, é a franqueza. Muito cedo elas tomam contato com a violência. Volta e meia perco um aluno porque a família teve que se mudar; os pais começam a vender crack e ou começam a fumar mais do que vendem ou simplesmente gastam a parte do fornecedor, e como imagino que o leitor já saiba, no mundo do tráfico não existe SERASA e quem não paga morre, simples assim. O sexo é outra coisa absolutamente presente para eles, na matriz ruim, infelizmente, e as ligações que eles fazem entre o sexo e a agressão são bem evidentes. Eles não te mandam tomar no cu, eles dizem que vão comer o teu cú. Apesar de ser um defensor do palavrão, sou ainda mais um defensor do sentido das palavras, e uma das ferramentas que utilizo para sofisticar a relação deles com a língua portuguesa é desconstruir o significado ruim que o palavrão pode ter (desculpem, mas é isso o que penso, o palavrão é parte da língua, sim). 
    Por exemplo, no começo das aulas com eles, ainda no ano passado, o vocábulo “caralho” era mais usado que vírgula em discurso. Daí um dia parei uma aula – na verdade fui parado por uma discussão entre dois meninos que estavam oferecendo os seus um ao outro – e em vez de xingar todo mundo e discorrer um  rosário de ameaças e reprimendas, desenhei um grande barco a vela no quadro; funciona uma barbaridade fazer coisas na aula que eles não estão esperando, e o simples fato de interromper a briga dos guris e desenhar um grande barco a vela no quadro gera um silêncio imediato mesmo nos alunos mais bagunceiros, e sei que dentro da cabecinha deles tem um cérebro viciado em coisas novas, como no teu, que lendo isso não deve ter a menor idéia (mas quer ter) do porque interrompi a briga e desenhei um grande barco a vela no quadro, não é? Somos viciados em saber das coisas. Então faço o seguinte; conto pra eles que o caralho está profundamente ligado a descoberta do Brasil – na verdade é com a descoberta da América mas a historinha que conto não desmerece a História real – e quando digo isto eles já sentam e, pelo absurdo do que estão ouvindo da minha boca, aumentam mais ainda atenção em mim, e digo aumentam porque estarem ouvindo eu falar o mesmo palavrão que eles falam já é um troço que desconcerta um pouco, e ouvir o palavrão fora do contexto de agressão ou de ambiguidade sexual também tira um pouco o chão dos pequenos. No barco que desenhei faço o mastro principal bem grande e detalhado, e conto pra eles que o cara que primeiro vê a terra é o que está la em cima, naquele cestinho. A frase é conhecida “Terra à vista!”, mas o que eu conto pra elas é que o carinha este, que fica lá no cestinho, não estava la porque queria mas porque era um serviço meio que obrigatório; li em 2 relatos de viagem dos descobrimentos que era um castigo. Uma vez andei 17 horas dentro de um transatlântico e cara, ficar ainda por cima lá em cima do mastro balançando para frente e para trás e para os lados horas à fio não pode ser um troço legal de fazer. Depois de sair do barco e de estar já deitado na cama no alojamento para onde fui eu ainda sentia o balouço do mar, uma sensação muito maluca. Pois é, depois de contar estas coisas para eles eu conto que o nome do cestinho este, onde o buneco ficava de castigo ou de serviço era caralho, e é daí que vem a expressão “vá pra o caralho que te carregue” ou vá para o caralho que o fôda”. Nos Açores, na ilha de São Miguel, os habitantes chamam o que aqui chamamos de cesta – esta que usamos na páscoa para colocar ovos de chocolate – de canastra ou ainda de canalha, o que mostra que a raiz  etimológica para caralho/canastra/canalha é a mesma. Não sei se é mas acho que o que aqui chamamos taquara os portugueses chamam de cana, daí a palha da planta trançada usada para fazer cestos ser chamada de canalha, canastra ou caralho. A ligação com o pênis eu fico devendo mas pode ter a ver com o mastro que suportava o cesto, este. Depois de explicar isso pra eles deixo claro o quanto é imbecil o uso que eles fazem do vocábulo, e então acontece um fenômeno curioso; ao pensar o significado da palavra, ela parece ficar estragada para uso como palavrão, e invariavelmente eles não a utilizam mais. Mato vários coelhos com uma só história; falo da história da descoberta do novo mundo, falo das transformações que a palavra sofre com o passar do tempo e desconstruo um modelo ruim de uso da palavra, e além disso, da próxima vez em que eu começo a fazer alguma coisa incompreensível para eles, o foco de atenção dos pequenos se dá cada vez mais rápido; o que será que este professor doido vai nos contar desta vez?
           Mas mudei de assunto! o que eu quero contar destas crianças é que felizmente as minha hipóteses pedagógicas funcionam muito – não estas que citei, que nem considero pedagogia mas só levar as crianças a serio mesmo – me refiro aqui aos meus postulados sobre instrução rítmica. Durante o segundo semestre do ano passado fiz estas crianças aprender a marcar subdivisões e partindo da soma destas organizar padrões de acento e de tamanho rítmico, sempre pensando em modelos matemáticos, e salvo num momento em que os ensinei a ler o ritmo usando as figuras normais que utilizamos em música, todo o trabalho de conscientização rítmica foi feito usando apenas a capacidade de memória rítmica que cada criança tinha. Descobri por exemplo que posso ensinar frações usando o estudo do ritmo, e que posso ensinar conjuntos – pertinência, união e intersecção, inclusive – também usando as ferramentas que a capacidade rítmica dos alunos. Claro que do ponto de vista deles, e das professoras que me abalizavam o trabalho, e do ponto de vista de todo mundo, pra ser bem franco, eu estava apenas disciplinando o pensamento rítmico dos alunos e os ensinando a cantar e tocar instrumentos. Realmente, ensinar música partindo do estudo de padrões de acento e subdivisão é um milhão de vezes mais rápido e efetivo do que o modelo macaquinho que normalmente vejo nas propostas de instrução musical para crianças, mas pessoalmente já tenho evidências suficientes para acreditar que descobri novos modelos para o aprendizado de música e é uma questão de tempo para que isso cresça e saia da minha mão – tenho alunos tanto da Federal quanto do IPA estudando comigo e na medida em que estas pessoas se graduarem e passarem por sua vez a lecionar, o Processo estará cada vez mais presente no ensino de música aqui no RS, e provavelmente nem será mais chamado de Processo Nardes, mas, e é o que mais quero, será apenas um modo sério, claro e simples de estudar produzir o fazer musical. O que estou pesquisando agora é o quanto a música, vista aqui como uma versão sonora de uma folha para cálculo matemático, pode ser um poderosíssimo instrumento de instrução matemática; está tudo pronto, qualquer aluno que seja capaz de falar é capaz de aprendizado rítmico e em sua mais esmagadora maioria – eu nunca encontrei nem um único contra exemplo, mas por rigor científico não descarto que possa haver – todos os seres humanos já nascem com o software do ritmo incluído. Estou estudando a respeito, mas minha hipótese é a de que o ritmo está profundamente ligado ao processo de aprendizado da fala. Crianças de 1 ano já se balançam ao ouvir um padrão rítmico qualquer, e do balbuciar até as primeiras palavras o processo é de uma crescente sofisticação da articulação rítmica, para não citar toda uma outra parte onde o ritmo pode ser um subproduto de um outro kit que rapidamente se monta em nosso cérebro; o do equilíbrio... os virtuoses da música e os lutadores de Kung Fu sabem do que estou falando. 

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